domingo, 14 de março de 2010




A maldição de malinche

"1492", grande filme de Ridley Scott faz pensar, entre outras coisas na brutalidade da conquista colonial. Cristóvão Colombo, típico homem do renascimento, chegou a um Novo Mundo quando na verdade buscava e morreu persuadido de haver chegado ao Oriente por uma nova rota ocidental. Leitor ávido das aventuras de Marco Polo durante sua adolescência em Gênova Colombo persuadia-se de ser possível chegar ao famoso "Império Catai" - China - próximo às ilhas de Cipango - Japão - através de uma nova rota marítima, "ao levante viajando em direção ao poente". Jamais contando com a possibilidade, sequer remotamente aventada de existir um continente inteiro entre a Europa e a Ásia, julgou haver chegado por mar às ilhas de Cipango quando havia atingido o Caribe e lá ouviu falar de um poderoso Império no continente que nem chegou a conhecer (os aborígenes referiam-se à Confederação Azteca, mas Colombo julgava estarem a falar da China...). Como nos esclarece Tzvetan Todorov, é fascinante perceber como uma pessoa apaixonada e fanatizada por uma determinada idéia deixa-se levar por ela a tal ponto de todas as circunstâncias em torno estarem a informar-lhe estar efetivamente concretizando seus sonhos. A existência de papagaios e pessoas com olhos amendoados era claro indício a Colombo de haver chegado onde Marco Polo havia estado três séculos antes por caminho terrestre. Indício também de que estava próximo da riqueza e do esplendor relatado por seu herói dos tempos de menino.
Recebido pelos aborígenes como gente muito importante, "deuses" segundo a visão dos povos do Caribe, os espanhóis eram presenteados com o tão cobiçado ouro, a prata e ao perceberem suas intenções os chamados "índios" espertamente iam indicando direções longínquas onde estariam os grandes veios de riqueza que seus visitantes tanto buscavam.
Faça-se a ressalva de que Colombo liderou um movimento inédito e, profundamente cristão, pensava portar consigo a mesma missão que o santo de seu nome. Assim como Cristóvão levou Jesus Menino pelas águas de um rio caudaloso, Colombo ansiava por ser o portador da mensagem crística através do mar oceano aos povos de além-mar. Movia-lhe ainda o elã cruzadístico que a Europa finalmente conseguia reconquistar importantes territórios aos "mouros", como Granada ao sul da Espanha no mesmo ano da vinda ao Novo Mundo. Queria enriquecer, buscava o ouro, especiarias e pedras preciosas mas era também movido por ideais "nobres", como se percebe.
Somente após a viagem de Américo Vespúcio em torno do continente recém-descoberto, seguido da publicação de sua obra Mundus Novus é que a Europa percebe estarem lidando com um continente novo, não com aquilo que Colombo pensava ou propagandeava. Tristemente, Colombo pouco contato teve com as informações sequer trazidas por Américo Vespúcio, morrendo no ostracismo na península itálica o desbravador do "mar tenebroso".
Um sujeito muito mais ambicioso e bem menos escrupuloso que Colombo, Hernán Cortez, com nenhuma cortesia e muita violência "conquista" o mundo azteca. Amparo Ochoa, poeta e cantora descendente de aztecas tem uma canção magnífica, intitulada "A maldição de Malinche" dando-nos uma idéia do que teria acontecido quando da chegada daquela nova leva de espanhóis...
"Do mar os viram chegar meus irmãos emplumados, eram os homens barbados, da profecia esperados..." Quando os aztecas em seu esplendor receberam a notícia da chegada de gigantescas naves, verdadeiros prédios a atravessar o Oceano, possivelmente sentiram algo parecido com o que sentiríamos ao receber visitantes de outra galáxia em nosso planeta hoje. E Quetzalcoatl, a divindade serpente-alada havia deixado Tenochtitlán, sede da Confederação Azteca, com a promessa de um brilhante retorno. Muito ligados às profecias em seus famosos "códices" os aztecas prestavam particular e acurada atenção a todos os sinais dos tempos. Tudo tinha de estar previsto, o tempo, para eles, não era visto de maneira linear, como para nós, mas de maneira circular, seguindo aqui Renato Russo mais uma vez: "O que aconteceu ainda está por vir", é o eterno retorno, nenhuma grande novidade, eis que os deuses que partiram com Quetzalcoatl retornam...
Quarenta séculos, pelo menos, separam a cultura e a civilização européia daquelas encontradas no continente americano e, se o Homem do Renascimento aprendeu a utilizar-se abundantemente da simulação (fingir ser algo que não é), dissimulação (ocultar o que de fato é), fingimentos e mentiras, os "índios" encaminharam sua cultura e civilização na direção de manifestar-se com a transparência e inocência dos sonhos infantis. Diz Amparo Ochoa em sua música que houve um irrevogável erro de cálculo, um decisivo equívoco na avaliação dos visitantes, sempre homenageados com ouro e pedras preciosas em troca de espelhos brilhantes. Além disso, uma crença na boa-fé dos que chegavam com discursos pacifistas num momento partindo para o massacre e destruição segundos após o término de uma mensagem de paz, aí é que está, verberada e traduzida pela Malinche.
Malinche, consorte de Montezuma, por ter grande facilidade com idiomas, foi cooptada pelos espanhóis, tornou-se consorte de Cortez e fazia as vezes de intérprete, quiçá ingenuamente traindo sua própria gente. Como tudo precisa estar previsto em profecias dentro da mundividência azteca, cria-se mais uma, retroativa, informando que "caso uma consorte do tlatoani (aquele que fala, porta-voz do povo, "ditador", num certo sentido) se passe para o lado do estrangeiro a Nação, o povo azteca, ficará escravo por trezentos anos".
Esta a maldição que a Malinche traz a seu povo: "Ainda hoje, se vemos chegar homens loiros com alta tecnologia, tudo a ele cedemos. Mas se vemos chegar cansado um índio de tanto vagar pela terra, o humilhamos e o vemos como estrangeiro em solo que um dia foi dono dele" - outra característica marcante, jamais se encontrou no continente americano um povo que considerasse sequer remotamente a possibilidade de "ser dono da terra", ao contrário, a terra sempre foi considerada superior e dona dos homens, daí o estranhamento com respeito às curiosas propostas de compra de suas terras por parte de seus primeiros e originários moradores.
"Ó maldição de Malinche, quando nos deixarás? Quando deixarás livre a minha gente?" clama ao final da canção, quase aos prantos, Amparo Ochoa. Tornou-se comum para algumas civilizações aborígenes ver o Estado Nacional colonial como um inimigo, uma maldição que, cedo ou tarde será varrida do mapa. No caso azteca, como muito bem nos ilustra a canção a que aqui me refiro. No caso Inca, tem-se um curioso sincretismo entre o culto solar - Inti, o disco solar em náhuatl - e o cristianismo. O Inca, imperador de todo o povo dos andes antes da chegada dos espanhóis, foi aprisionado por um antigo criador de porcos, Francisco Pizarro, libertado após prometer trazer o cobiçado ouro aos conquistadores, cumpriu a promessa, foi novamente aprisionado e esquartejado estando hoje, segundo a crendice andina, à espera do momento da ressurreição. Chamam a isto de "o Cristo repartido" que estaria se reagrupando e prestes a reerguer o antigo império Inca contra os colonizadores, o hoje Estado Nacional Peruano. Os mitos são muito importantes, como já disse, e retratam vividamente o que anseia a alma de um povo. Há insatisfação? Antigas profecias e novos mitos informam que este tempo de dores passará e logo virá a redenção, a abundância e a paz reinará onde se semeou tanta dor e destruição.

Espanhóis x Astecas

A ajuda dos povos dominados e a superioridade técnica, com armas mais poderosas e o domínio da pólvora, são duas das possíveis razões para a queda do Império Asteca diante de Hernán Cortés e seus homens. Outra teoria diz respeito aos deuses, que tinham enorme importância naquela sociedade – o que pode explicar a fácil rendição do imperador Montezuma diante do invasor num momento interpretado por ele como o fim de um ciclo, cercado de profecias que apontavam para a volta do deus Quetzalcoatl para retomar seu reino. Montezuma teria enxergado Cortés como o próprio Quetzalcoatl. Como a teoria fatalista não seria compartilhada por todos os astecas, a rendição do imperador não foi bem aceita – e ele foi morto com uma pedrada de origem incerta. Cortés teve de enfrentar o novo imperador, Cuauhtémoc, que não aceitava o domínio estrangeiro. Aí entrou a superioridade tática: "Cortés contraria a chamada 'guerra florida' dos astecas, uma espécie de balé com hora marcada, em vez da emboscada, por exemplo", diz Leandro Karnal, professor de História da Unicamp e autor de Teatro da Fé – Representação Religiosa no Brasil e no México do século XVI. "Com isso, em 13 de agosto de 1521, Tenochtitlán [a capital do império] cai. Cortés foi um homem hábil politicamente, muito carismático, que soube arregimentar a simpatia dos índios."Malinche tornou-se fundamental para os planos do conquistador porque, como diz Bernal, "Cortés, sem ela, não podia entender os índios". Apesar da importância estratégica e de ser mãe do filho do espanhol, Malinche foi novamente entregue. Dessa vez, por Cortés para um companheiro de expedição, Juan Jaramillo. Ela se casou, ganhou a liberdade e teve uma filha, Maria. Não se sabe quando Malinche morreu – acredita-se que foi em 1529, mas algumas fontes falam em 1551.Mais de três séculos depois de sua morte, o filósofo e lingüista Tzvetan Todorov afirmou em seu livro A Conquista da América: "É verdade que a conquista do México teria sido impossível sem ela". Todorov destacava a importância da linguagem em todo o processo de domínio da civilização asteca e dos povos ao redor por Cortés. E explicava, assim, a dimensão que o nome de Malinche tomou no país. Não só sua imagem mudou ao longo dos séculos, mas também a importância atribuída a ela. "Na época da conquista, ela era respeitada. Não foi só tradutora e amante, tinha influência", afirma Leandro Karnal. "Depois da independência, o México construiu a identidade do asteca como ancestral de sua nacionalidade, como um povo feliz, o que é uma visão romântica. Então ela vira a traidora. Sua imagem só começa a ser reabilitada nos anos 80, quando a importância da comunicação, da mulher e dos aliados indígenas cresce nas análises históricas."Houve muita violência na conquista da América. Mas o que alguns especialistas contestam hoje é que a chamada "visão romântica" nega o outro lado: a crueldade dos astecas com os povos dominados, que incluía uma enormidade de sacrifícios humanos em nome dos deuses. "A figura do espanhol não foi vista como a de conquistador num primeiro momento, por isso tantos povos se uniram a ele. Cortés liderou um exército de indígenas, Malinche não era a única ao seu lado", afirma o historiador José Alves de Freitas Neto, da Unicamp. Para Todorov, a índia que ajudou a Espanha a dominar o México "anuncia o estado atual de todos nós, inevitavelmente bi ou triculturais". O problema é que a mistura que Malinche representa é vista até hoje como impura em seu país, atrelado ao passado romântico. Com isso, a população não reconhece nela o que Octavio Paz chama de "Eva mexicana" – ou a mãe simbólica de todo um povo.

O batismo do Mito

Malinche virou Malinche após o encontro com os espanhóis. Ela e dela, pois acreditaram que os chamava para matá-los, e choravam. E, assim como os viu chorar, dona Marina os consolou e disse que não tivessem medo, que quando a entregaram aos xicalangos não sabiam o que faziam, e os perdoava, e lhes deu muitas jóias, ouro e roupas, e disse que voltassem a seu povoado", escreveu Díaz. "Dona Marina tinha muita personalidade e do espanhol. No fim, eles não foram de serventia alguma, já que não conheciam os idiomas locais. Mas a experiência mostrou aos colonizadores a necessidade de treinar intérpretes. Assim, segundo Gorges L. Bastin, professor de lingüística e tradução da Universidade de Montreal, no Canadá, e autor de um estudo sobre tradutores no Novo Mundo, Colombo levou dez nativos de volta para a Europa para que pudessem aprender a cultura e a língua espanholas, política mantida em expedições seguintes, como a de Américo Vespúcio, em 1499. O próprio Hernán Cortés, além de Malinche e Jerónimo de Aguilar, teve, no começo, a ajuda de Orteguita, um garoto mexicano que checava se as palavras que Malinche traduzia correspondiam mesmo ao que o espanhol havia dito. Espanhóis treinavam pessoas para conseguirem comunicar-se com nativos do Novo Mundo.As 19 outras escravas oferecidas aos conquistadores foram as primeiras pessoas batizadas na América. Após o ritual, ganharam nomes cristãos. A índia foi chamada de Marina e, sem conseguir pronunciar o "r", aos poucos foi sendo transformada em Malintzin. Por sua vez, os espanhóis, com dificuldade para falar como os índios, passaram a chamá-la de Malinche.Jerónimo de Aguilar, um religioso espanhol que naufragara por aquelas bandas provavelmente em 1511 e falava náuatle, era o intérprete oficial de Cortés. Quando descobriram que Malinche falava maia, ela começou a ser usada para fazer Cortés entender o que os povos daquela origem falavam. Ela ouvia as frases em maia, passava para o asteca e Aguillar fazia a tradução do asteca para o espanhol. De tanto fazer isso, a jovem logo aprendeu o espanhol e ganhou nova alcunha: era agora "a Língua", aquela que intermediava a comunicação entre os indígenas e os recém-chegados. A escrava começou a ganhar importância, a ponto de se tornar amante de Cortés e ter um filho com ele, Martín.Por suas habilidades lingüísticas, Malinche passou a ser usada nas operações de conquista por Cortés, que a infiltrava em várias tribos. Ela inclusive esteve presente no primeiro encontro entre o espanhol e Montezuma II, o imperador asteca, um momento decisivo na história mexicana, em 8 de novembro de 1519. Também foi graças a ela que Cortés conseguiu se comunicar com diversos outros índios.Numa de suas andanças, a índia reencontrou a mãe e o irmão mais novo. Bernal Díaz conta que, após a chegada dos espanhóis à tribo, os parentes de Malinche foram batizados. A mãe passou a se chamar Marta e o irmão, Lázaro. Ele era o cacique da tribo, assim como o pai fora. Ao reconhecerem Malinche, a mãe e o irmão ficaram apreensivos. "Tiveram medo dela, pois acreditaram que os chamava para matá-los, e choravam. E, assim como os viu chorar, dona Marina os consolou e disse que não tivessem medo, que quando a entregaram aos xicalangos não sabiam o que faziam, e os perdoava, e lhes deu muitas jóias, ouro e roupas, e disse que voltassem a seu povoado", escreveu Díaz. "Dona Marina tinha muita personalidade e autoridade absoluta sobre os índios de toda a Nova Espanha." Malinche foi, na época da conquista, apresentada pelos cronistas como uma mulher poderosa a ponto de fazer um cacique e sua mãe chorarem de medo. E piedosa na medida em que perdoava os abandonos passados. Mais que isso: era uma senhora respeitada e influente. Mas sua imagem mudou muito com o tempo.

Malinche: A Judas mexicana


Em 1519, um navio espanhol aportou em Tabasco, na costa do golfo do México. Seus ocupantes, todos estrangeiros, receberam dos nativos diversos presentes de boas-vindas. Pães, frutas, aves, ouro e pedras semipreciosas foram entregues aos desconhecidos navegantes. Entre os regalos estavam 20 mulheres escravas. Elas deveriam preparar-lhes a comida e, claro, prestar outros favores que tornariam sua vida ali mais agradável. Inclusive sexuais. Entre as escravas, uma virou polêmica. Fluente em maia e asteca, a moça serviu de intérprete para os estrangeiros e os ajudou na comunicação com os índios locais. Chegou a ter um filho com um dos europeus. O mestiço Martín é considerado o primeiro "mexicano" da história. Malinche, seu nome, continua a ser considerada uma traidora, espécie de Judas de sua nação. Seu envolvimento, afinal, foi com Hernán Cortés, o homem que destruiu o Império Asteca e deu início ao extermínio do povo de sua própria amante. Pouco se sabe sobre Malinche, citada apenas duas vezes nas cartas que Hernán Cortés escreveu para o rei espanhol Carlos I. Acredita-se que ao nascer, por volta de 1496, tenha sido chamada de Malinalli, nome de uma erva que, trançada, era usada para fazer roupas, e também de um dos dias do calendário da época, exatamente aquele em que ela nasceu. Era uma índia nahua, uma das diversas etnias que compunham o México pré-colombiano, provavelmente de Xalixco, na divisa entre o Império Asteca e estados maias. Francisco López de Gómara, que escreveu em 1552 Historia de las Indias, conta que a menina era filha de pais ricos, mas que foi seqüestrada ainda criança e vendida para índios de ascendência maia, de Xicalango. Eles a teriam passado para o povo de Tabasco até ela ser dada para os espanhóis. Há outra versão, contada em 1560 pelo conquistador espanhol Bernal Díaz del Castillo, que acompanhou Cortés e escreveu La Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva España. Segundo ele, os pais da índia eram caciques em uma cidade chamada Paynala. Após a morte de seu pai, a mãe teria se casado com outro cacique e tido um filho com o novo marido. Para que o bebê tivesse direito à herança, o casal resolveu dar a filha mais velha para os índios de Xicalango. Assim, ela teria aprendido tanto o idioma maia quanto o náuatle, a língua asteca. Habilidades que a tornariam indispensável para Hernán Cortés.